(Essa matéria foi escrita por Beatriz Miranda e traduzida por Izabel Muratt)
Foto: Reprodução The Guardian - Fotografia por: Kadu Xukuru
Um vibrante cenário underground de rap, metal, folk e muito mais está prosperando entre as tribos em guerra do Brasil, que estão enfrentando as políticas ambientais de Bolsonaro.
Enquanto a biodiversidade mundialmente aclamada do Brasil se transforma em cinzas, o presidente Jair Bolsonaro elogia o país como um modelo ambiental. “Não é só na preservação do meio ambiente que o país se destaca”, afirmou o dirigente de extrema direita em discurso na ONU no dia 22 de setembro. “No campo humanitário e de direitos humanos, o Brasil também tem sido referência internacional.”
Ao mesmo tempo, o New York Times informou que uma equipe de advogados brasileiros está redigindo uma denúncia ao Tribunal Penal Internacional de Haia com o objetivo de levar Bolsonaro a julgamento por crimes contra a humanidade, por remover as proteções ambientais para os povos indígenas. Bolsonaro não respondeu, mas disse: “Onde há terra indígena, há riqueza por baixo” e em fevereiro propôs um projeto de lei para legalizar a mineração em terras indígenas.
Em abril, a Fundação Nacional do Índio (Funai) - que tem como missão a defesa dos povos indígenas - legalizou a ocupação de terras rurais em 235 áreas indígenas. Em julho, as comunidades indígenas amazônicas viram um aumento de 76% nos incêndios ilegais em suas terras em comparação com o mesmo mês de 2019 e, de acordo com a organização de direitos indígenas APIB, o coronavírus foi três vezes mais letal para os povos indígenas do que para o resto do país.
Portanto, em meio aos perigos e às violações de seus direitos negligenciados, os indígenas estão se posicionando - com música. Um cenário antigo, ainda pouco conhecido entre o público não indígena, está ganhando visibilidade com letras e vídeos que abordam o alegado ecocídio e etnocídio do Brasil. Ao unir música ancestral e urbana com tecnologia, os músicos indígenas estão defendendo a si mesmos e lutando por sua existência.
Quando o presidente assumiu o cargo, a cantora e compositora Kaê Guajajara temeu que ela “fosse morrer” por conta de suas ações hostis e retóricas. Kaê pertence à etnia Guajajara, localizada na parte amazônica do estado do Maranhão, no nordeste do Brasil. Unindo hip-hop, instrumentos tradicionais e elementos de sua língua materna Ze’egete, Kaê faz música sobre a realidade dos povos indígenas urbanizados e o apagamento das identidades indígenas.
“Não consegui emprego por causa das pinturas indígenas na minha pele”, diz Kaê. “Estar na cidade, andar na rua como eu sou, já é um ultraje. Minha música comunica minha realidade: metade de mim é uma tribo indígena, a outra metade é a cidade.” Ela cresceu no complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, tendo deixado o Maranhão aos sete anos porque as condições de vida de sua mãe não eram, segundo ela, diferentes da escravidão. A terra de origem de sua mãe não é demarcada (processo que garante aos indígenas o direito já constitucional de possuir suas terras, tornando-as menos vulneráveis à mineração e extração ilegal de madeira). “Minha família maranhense se preocupa mais em ter comida na mesa do que em reivindicar a demarcação de terras”, afirma.
Enquanto o trabalho de Kaê evoca hip-hop, ela foge dos rótulos. Um exemplo brilhante é a música Essa Rua É Minha, que funde o funk carioca com a flauta indígena; seu segundo EP, Wiramiri (passarinha, em Ze'egete) gira em torno de autocuidado, amor-próprio, resistência indígena e a pandemia de coronavírus.
Kaê não descarta assinar com uma grande gravadora, desde que continue cantando sobre a causa indígena: “Tenho medo de me embranquecer. Tenho que ter cuidado para manter minhas raízes e cumprir minha missão: me infiltrar em estruturas de poder que dizem que os povos indígenas não existem mais.” Suas canções já estão sendo utilizadas como material didático por dezenas de professores.
A perspectiva sociopolítica que impulsiona a música de Kaê se conecta com um movimento cultural recente que ganhou popularidade entre os artistas indígenas urbanos, conhecido como futurismo indígena. Kaê diz que se trata de “ousar nos imaginar no futuro e usar novas tecnologias para aumentar a visibilidade indígena.”
O termo foi cunhado em 2012 pela Dra. Grace Dillon da Portland State University, que é descendente do povo Anishinaabe do Canadá e dos Estados Unidos. De acordo com Klaus Wernet, etnomusicólogo da Universidade de São Paulo, também foi por volta de 2012 que as comunidades indígenas do Brasil começaram a comprar smartphones e construir “parcerias musicais estratégicas” via WhatsApp e mídia social. A jornalista Renata Tupinambá, cofundadora da rádio indígena Yandê, que ajudou a organizar o festival Yby - o primeiro do Brasil para a música indígena contemporânea - afirma que o futurismo indígena usa a tecnologia para fazer “arte, música e literatura ferramentas de sobrevivência cultural. Isso desafia a mentalidade racista de que os povos indígenas estão presos no imaginário colonial do século 16.”
Mas nem todos os artistas indígenas abraçam o conceito. Um dos rappers indígenas mais proeminentes do Brasil é Kunumi MC, de 19 anos, um nativo do povo Guarani - que se espalha pelo sul do Brasil, Paraguai, leste da Argentina e outros lugares - de Krukutu perto de São Paulo. A música de Kunumi não poderia ser mais moderna - um de seus últimos sucessos combina trap, reggaeton e violino indígena para lidar com a demarcação de terras e o desmatamento - mas ele vê o futurismo indígena como um termo dos brancos. “Nós, indígenas que vivemos em tribos, não pensamos no futuro”, diz ele. “O homem branco tem uma visão de progresso, não nós. Nosso progresso é preservar nossa cultura... para viver no presente, tenho que lembrar meu passado.” Para ele, as tecnologias mais importantes são “comida sagrada, remédios, meu rap”, e não smartphones. A realidade Guarani contrasta profundamente com a de São Paulo. Mesmo antes da pandemia, Kunumi dificilmente saía da floresta porque, na cidade, ele se sente “um estranho”. “Temos medo da cidade - da poluição; das doenças espirituais e físicas.” De acordo com Kunumi, metade de sua tribo Krukutu (cerca de 150 pessoas) foi infectada pelo coronavírus.
Fã de Michael Jackson, e fazendo rap desde os 10 anos de idade, o ativismo de Kunumi ganhou força após a Copa do Mundo de 2014 no Brasil, onde ele se manifestou com um cartaz escrito "Demarcação de terras agora!" no meio do estádio de futebol. Kunumi canta em guarani para contar a história de sua ancestralidade: “Eu canto a verdade do meu povo. Minha música é um protesto contra tudo o que está acontecendo agora aos povos indígenas no Brasil.” Ele diz que os recentes ataques do governo de Bolsonaro o inspiram a ser mais forte.
Tendo gravado com o celebrado rapper brasileiro Criolo, Kunumi é cético em relação ao ativismo de músicos que se autodenominam indígenas: “Eles não ajudam muito a causa. Eles cantam a luta, mas nós, que vivemos nas tribos, somos os que mais sofrem.”
Um desses músicos, Juão Nyn, entende o que Kunumi quer dizer: “Acho que faz sentido. Mas a violência que o povo indígena nativo está experimentando agora é a mesma violência que meus ancestrais experimentaram no passado. Meu dever, como um artista indígena urbanizado, é evitar que os povos indígenas nativos experimentem esses silenciamentos.”
Filho de pai potiguara, Nyn nasceu no Rio Grande do Norte, único estado brasileiro sem a demarcação de terras indígenas - embora este estado abrigue pelo menos 14 comunidades autodeclaradas indígenas. O medo de que o resto do Brasil se transforme no Rio Grande do Norte - estado que Nyn diz ser “mais obsoleto que o próprio passado” devido à sua violência histórica contra o povo Potiguara - é o que o inspira a resgatar a memória indígena por meio da música: “É possível reivindicar a demarcação de terras se não demarcarmos primeiro nossos imaginários com herança indígena?”
Ativista dos direitos LGBTQIA+ radicado em São Paulo, Nyn é o fundador da banda Androyde Sem Par, que mistura estilos pop e rock em canções com inflexão guarani sobre diversos relacionamentos amorosos e ancestrais indígenas. Enquanto Nyn teme que o termo futurismo indígena possa ser uma "armadilha colonial", ele acha que os artistas indígenas contemporâneos estão fazendo uma mudança ao "resgatar tradições para reinventar culturas impostas".
Antes da nossa entrevista, a musicista Djuena Tikuna nunca tinha ouvido falar do futurismo indígena, mas sua música, ela afirma, é também uma arma de descolonização, “uma reivindicação de respeito aos povos indígenas”. Ela pertence à etnia Tikuna amazonense e reúne sonoridades amazônicas e referências musicais globais. Já foi indicada aos prêmios de música indígena e foi a primeira artista indígena a se apresentar na suntuosa sala de concertos do Teatro Amazonas, símbolo da colonização portuguesa em Manaus.
Atualmente trabalhando em A Floresta Cura, uma música sobre a pandemia do coronavírus, Tikuna também é jornalista cobrindo os direitos indígenas - “O jornalismo me ajudou a entender como ajudar outros músicos indígenas e fazer nossas vozes ecoarem” - e fundou o primeiro Festival de música indígena da Amazônia em 2018. “Quero que essa mensagem seja entendida independentemente das barreiras linguísticas”, diz ela, chamando sua música de “um ato de resistência”.
O autodenominado músico indígena Zândhio Huku, vocalista da banda de heavy metal Arandu Arakuaa, também vê a música desta forma: “Não estou na linha de frente, gritando ou discutindo. Mas minha música ressoa uma mensagem política.” Descendente da etnia Krahô e natural do Tocantins, Zândhio escreve nas línguas Xavante, Xerente e Tupi, e suas letras retratam “cosmovisões” indígenas, onde a natureza é a verdadeira razão de ser. “Você só entende a luta indígena se tiver sua visão de mundo, que entrelaça a natureza e o sagrado.”
Em setembro, a banda lançou o videoclipe de Am’mrã (Estrela Cadente), uma música sobre a conexão entre a natureza e as culturas indígenas. Misturando percussão indígena e afro-brasileira com violão, o clipe foi lançado no mesmo dia em que oito nações europeias alertaram o Brasil para tomar medidas contra o desmatamento na Amazônia.
Por uma década, o desmatamento na Amazônia não tinha sido tão escandaloso como em agosto, quando a floresta tropical perdeu uma área próxima ao tamanho de Londres. Enquanto isso, o Pantanal sofreu neste ano os piores incêndios florestais de sua história, que consumiram uma área tão grande quanto a Bélgica. Mas as autoridades aplicaram menos multas por violações ambientais em 2020 do que em qualquer outro ano na última década.
“Nosso país está dividido entre aqueles que defendem viver bem e aqueles que querem roubá-lo de nós. Estes querem impor a maneira como vivemos, oramos e morremos”, afirma Kaê Guajajara. Para esta cantora indígena criado na favela, só há uma saída: “O Brasil só pode se tornar independente com um presidente indígena, que vê a natureza e o homem como um só ser.”
Mais artistas indígenas brasileiros para descobrir
Cantora e compositora Tikuna. Misturando instrumentos tradicionais, como o pau-de-chuva, com violino e violão, sua música fala sobre amor, respeito à natureza e união das pessoas.
Cantor e compositor que faz funk brasileiro sobre o jeito Kayapó de amar e viver.
Rapper lésbica Bororo cujas canções denunciam os ataques e os estereótipos contra os povos indígenas no Brasil.
Descendente do povo Mapuche, do Chile, Brisa Flow experimenta rap, neo-soul e música eletrônica para discutir a liberdade feminina, o racismo e a ancestralidade indígena.
Artista Guarani considerado o pioneiro da música trap indígena no Brasil, cujas canções retratam o jeito Guarani de ser.
Primeiro grupo de rap indígena de São Paulo, formado por Xondaro MC, Gizeli Para Mirim e Mirindju Glowers. Nas línguas portuguesa e guarani, fazem rap sobre demarcação de terras e resistência indígena.
Influenciado pela música popular, tradições do Nordeste brasileiro e culturas musicais indígenas, este artista pertence ao povo Pankararú. Sua música é sobre a política brasileira e os direitos dos povos indígenas.
DJ e produtor musical de ascendência indígena, nascido na capital amazonense Manaus e criado na Itália, Nelson D experimenta texturas de música eletrônica e culturas sonoras indígenas.
• Este artigo foi alterado em 26 de outubro de 2020 para esclarecer que a jornalista Renata Tupinambá é cofundadora da rádio indígena Yandê, que ajudou a organizar o festival Yby, e para corrigir a história de Katú Mirim, que é Bororo, não Guarani como antes declarado.
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